segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Durante séculos, considerou-se natural tratar as crianças como escravos.
Bater é educar?
“Aboliram-se os castigos corporais para os adultos porque aviltam a dignidade humana e são uma vergonha social. Mas existe maior vileza do que agredir e bater numa criança?” Maria Montessori
Desde os tempos de Rousseau, o pai da Pedagogia moderna – e isso já faz mais de 200 anos –, não foram poucos os pedagogos e psicólogos que se opuseram ao castigo físico como método educacional. Mas ainda é preciso repetir essas reflexões para muitos que não têm acesso a esses escritos e que ainda se apegam com unhas e dentes ao velho método do chinelo.
Rousseau, com a coragem fenomenal de sempre se expor por inteiro, revelando ao mundo seus pecados e seus traumas, se opôs ao uso da violência na educação, por um motivo muito convincente e não menos constrangedor. É que, ao ser castigado na infância com os requintes das surras antigas, Jean-Jacques descobriu em si mesmo uma terrível perversão sexual, que o atormentou vida afora: o masoquismo. Eis o fato que dá início ao combate dos castigos físicos pela pedagogia moderna.
As consequências psicológicas desses atentados à dignidade da criança são sempre imprevisíveis: ainda mais se levarmos em conta que, em muitos casos, não se pode descartar uma dose de sadismo inconsciente da parte daqueles que aplicam os castigos. Está aí embutido um exercício violento do poder do mais forte sobre o mais fraco. Basta ver a disparidade de forças e a completa incapacidade da criança em se defender para perceber que estamos diante de uma clamorosa injustiça.
Acontece que a infância é o último reduto da tirania. Quando o adulto não pode exercer autoridade e poder sobre mais ninguém, quando ele mesmo é vítima da injustiça social, escravizado às engrenagens do trabalho opressor, quando não lhe é dado expandir seus desejos de domínio numa escala social mais ampla, então, sobra-lhe a infância, os filhos ou tutelados, para impor sobre eles o império do medo e da crueldade.
A escala da violência pode variar ao infinito, desde as surras esporádicas até as barbaridades que chegam aos hospitais e às delegacias. O princípio, no entanto, é o mesmo. No extremo da escala, revela-se como brutalidade pura e simples; e, nas famílias “mais normais”, aparece disfarçado por um discurso pseudopedagógico. Diz-se que “é preciso bater para educar”.
Pesquisemos honestamente os motivos que levam os adultos a bater em uma criança e descobriremos que na maior parte das vezes estão longe de ser educacionais. São, isso sim, motivos bem egoístas.
O adulto quer seu sossego e sua tranquilidade garantidos. A criança se expande, em sua energia, em sua necessidade de correr, gritar, brincar ou “fazer arte”. O tapa aparece como meio de reprimir a expansão que incomoda o sossego do adulto, em vez da compreensão necessária à força vital infantil ou de sua canalização produtiva em atividade interessantes.
O adulto trabalhador (nas classes mais simples) se sente cansado, explorado em sua labuta diária, e não admite que a função da criança seja estudar e brincar. Desconta sua revolta social na criança que, segundo ele, tem de ser também explorada e trabalhar duro – como ele. O filho é visto como força de trabalho e a filha, como sucessora natural da mãe. Se não preenchem convenientemente essas funções, que não são da criança, lá vem brutalidade física.
O motivo mais corriqueiro: a desobediência. O adulto se julga no pleno direito de ser obedecido e não reconhece à criança o direito de querer, pensar e agir – ainda que não seja querer, pensar e agir mal – simplesmente diferente da vontade dos pais. O que é isso senão o poder da tirania, sob a qual o súdito não tem qualquer direito ao exercício da própria vontade, mesmo se ela estiver certa?
Vamos supor que haja absoluta honestidade por parte de um educador e ele jamais abuse do seu poder – batendo por motivos egoístas ou de dominação –, e use a surra apenas quando haja, segundo ele, um grave desvio moral, qualquer tendência negativa acentuada. É preciso então refletir se a violência física atinge o fim a que se propõe e se ela pode ser realmente coadjuvante da educação moral. Temos aí de considerar algumas características da verdadeira moral:
• Um ato só é moralmente bom, ou seja, o homem só está agindo moralmente se sua ação for fruto de sua livre escolha, sem nenhuma coação externa. Até do ponto de vista legal, os testemunhos dados sob coação e tortura não têm valor moral, pois foram o resultado de uma imposição. Assim, a moral jamais pode ser filha do medo. Se uma criança deixa de fazer algo por medo de apanhar, ela não aprendeu de fato a agir moralmente, apenas reprimiu seus desejos (que, aliás, permanecem dentro dela, talvez fortalecidos pela proibição externa).
• O ato moral é uma conjugação da razão que compreende o bem e do coração que o sente. Por isso, todo conselho moral, que se possa dar na educação de uma criatura, tem de vir escorado na lógica impecável e estribado no sentimento puro. Ora, a pancadaria é justamente o argumento de quem não sabe argumentar e de quem não tem um amor bastante grande para influenciar beneficamente o outro. A violência introduz na relação educador/educando um clima de ressentimento (imediato e a longo prazo), de remorso, de humilhação, que solapa a base do amor equilibrado.
• A educação moral prevê de fato a correção das tendências negativas que o indivíduo possa apresentar. Cabe ao educador observá-las, estudá-las, analisá-las, ultrapassando a mera manifestação exterior do comportamento, para penetrar nas camadas profundas da psique. Cabe-lhe igualmente ajudar o educando a ver suas tendências e dar-lhe os instrumentos para sua melhoria (exemplos, conselhos, uma visão filosófico-religiosa da vida). A característica principal da construção moral, porém, é que cada individualidade só pode se aperfeiçoar por si mesma, por sua própria vontade. A verdadeira moralidade é a que brota da vontade inquebrantável do indivíduo de crescer espiritualmente. O educador deve procurar tocar a fibra dessa vontade e não simplesmente coibir a manifestação das más tendências por meio da surra e do castigo. Senão, ele estará apenas impedindo a manifestação de um sintoma, sem de fato tratar a doença.
Pelo exposto, fica evidente que a pancadaria jamais pode ser invocada como auxiliar da educação. Isso sem citar Jesus (para aqueles que o tomem como base de uma filosofia de vida), que pregou sempre a mansuetude e a misericórdia como mandamentos de nossa relação com o próximo. E se Ele recomendou benevolência e perdão até para os inimigos, o que devemos então, como tratamento, às crianças, essas criaturas tão frágeis, que nos chegam às mãos e que Jesus tanto amou?
Existem ainda aqueles que, embora não defendam a surra como coadjuvante da educação, compreendem alguns tapaços esporádicos como forma de descarregar as tensões. O adulto, no caso, para ser completamente autêntico em seu relacionamento com a criança, não pode reprimir a própria raiva em certas situações, e mesmo a criança teria a necessidade de sentir a reação do adulto, que muitas vezes ela provoca, para aliviar determinados sentimentos de culpa.
É provável que um tapa espontâneo, que escape na discussão, seja bem mais escusável do que a surra calculada e humilhante, dada com sangue-frio e espírito autoritário. Ainda assim, não se pode fazer a apologia de tal atitude, pois o educador deve justamente procurar manter o equilíbrio emocional e a atmosfera de tranquilidade doméstica, necessários ao bom andamento da educação.
E, depois, se devemos controlar nossos impulsos agressivos para com o próximo adulto, se devemos mesmo controlar a nossa língua para não ofender a dignidade alheia, com que desculpa daremos livre manifestação à raiva e à agressividade justamente para com as crianças?
Além disso, na hierarquia de poderes que ainda se estabelece nas famílias, apenas os pais, os adultos, têm o direito de descarregar tensões e distribuir tapas. A criança, na maior parte das vezes, não pode sequer “responder”. Isso indica o grau de autoritarismo da educação; afinal, sempre que há dois interlocutores, ambos têm direito à réplica.
Esperamos e queremos um mundo de paz, onde as guerras não sejam mais a linguagem dos povos; onde os direitos humanos sejam respeitados e as torturas e a opressão se desfaçam; onde as revoluções do progresso sejam de ordem moral e não mais de metralhadora em punho! Comecemos, então, por abolir a crença de que a violência tem de fazer parte das relações mais íntimas e sagradas que há na Terra: as relações entre pais e filhos, entre adultos e crianças. Saibamos desde cedo mostrar a elas que acreditamos na força do amor e no poder do diálogo para a evolução humana, e elas saberão mais tarde usar o amor para transformar o mundo!
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